Os vertiginosos dias de outubro começam logo a seguir ao anúncio oficial dos resultados, isto é, ao anúncio oficial da derrota da UNITA. Os dirigentes do galo negro não se conformam com o desfecho. Durante meses, muito por força do incentivo e dos discursos de Jonas Savimbi, mentalizaram-se que as eleições estavam ganhas. Diversas sondagens deram conta do favoritismo da UNITA, que no fundo era apenas aparente.
O mais inconformado é Jonas Savimbi. E, mais uma vez, se prova que a UNITA respeita as suas decisões, por mais controversas que sejam. Já refugiado no Huambo, na «Casa Branca», situada na parte alta a caminho do aeroporto, resolve fazer da cidade uma trincheira. E admite entrar em guerra nas zonas e cidades onde exerce mais influência. A única contestação tímida parte de Geraldo Nunda, que questiona Savimbi relativamente à capacidade da UNITA para enfrentar o, poder das tropas governamentais. A conversa entre os dois homens é reproduzida mas tarde pelo próprio Nunda a Jaime Nogueira Pinto:
“Mais Velho, se nós, aqui no Huambo, Benguela e Bié, se nós atacamos uma posição aqui, se atacarmos aqui os municípios, então também a guerra em Luanda vai começar.
E pode começar!, desafia Savimbi. Antigamente nós tínhamos o apoio dos sul-africanos e dos americanos, mas agora já não vamos ter. Como é que nós vamos conduzir a guerra? Nós vamos encontrar maneira...”
Tanto as Nações Unidas, como a comunidade internacional temiam aquilo que viria a acontecer: a fuga de Savimbi para o Huambo indicava o início da guerra. Desde a capital do Planalto Central, o líder da UNITA recebe mensagens e telefonemas de quase todo o mundo. O secretário-geral das Nações Unidas, Boutros-Boutros Ghali, e o sub-secretário de Estado norte-americano, Herman Cohen, são os primeiros a tentar demover o líder da UNITA. Cohen faz diversas viagens entre os Estados Unidos e Luanda e transporta mensagens de George Bush dirigidas a José Eduardo, dos Santos e a Jonas Savimbi. A determinada altura, o líder da UNITA aceita reunir-se com o presidente angolano, mas exige que seja no aeroporto de Luanda. A proposta não é aceite e até «Pik» Botha, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros sul-africano e aliado de Savimbi, tenta convencê-lo a viajar até Luanda.
A comunidade internacional está empenhada em pressionar para que os resultados sejam reconhecidos e para que se comece a preparar a segunda volta das presidenciais. Jonas Savimbi regressa aos seus tempos de longos discursos difundidos pela rádio Vorgan. Alguns deles lidos a altas horas da madrugada, carregados de simbolismos e de metáforas e, muitas vezes, sem nexo. A 19 de outubro, lança um aviso à comunidade internacional, ao mesmo tempo que tenta mobilizar os militantes da UNITA, preparando-os para os tempos mais próximos:
“Queria dizer a todos os governos que, se por um lado devemos agradecer à comunidade internacional a sua cooperação, temos o direito, por outro lado, como angolanos em solo angolano, de dizer que o seu comportamento foi negativo... [Alguns angolanos] quando souberam que as eleições tinham sido fraudulentas suicidaram-se, outros sofreram ataques do coração, desapareceram deste mundo. Um sinal significativo de que o processo não foi limpo nem transparente... Temos duas sociedades aqui em Angola. Uma, ao assistir à partida das organizações internacionais, aplaudirá e oferecer-lhes-á flores. Mas a maior parte da sociedade considerará que a vinda dessas organizações para Angola foi a pior desgraça para a nossa nação... Não querendo desperdiçar o vosso tempo com organizações internacionais, dirijo-me aos angolanos. Angolanos, tenham esperança. Angolanos serão todos os homens e mulheres que se vão erguer... para mudar a história, que vão erguer-se para alcançar a honra e a dignidade. Para alcançar a justiça muitos de nós estão dispostos a fazer qualquer tipo de sacrifício.”
Mais uma vez, Savimbi revolta-se contra antigos aliados, amigos desde a primeira hora, e enfrenta tudo e todos. A estratégia só não é suicida, a curto prazo, porque a UNITA tem guardado um trunfo: um dispositivo de homens e de armas que lhe permite reiniciar a guerra, ignorando os avisos de toda a comunidade internacional. Mais uma vez, Savimbi age por conta própria, seguindo apenas os seus instintos, como dá conta Lukamba Paulo Gato:
“Jonas Savimbi foi um líder de convicções muito profundas e levou-as até às últimas consequências da sua lógica. Chegou a ser descrito por um historiador togolês como sendo "l’homme dês grands reffus", o homem das grandes recusas. Recusou o colonialismo português, desde muito jovem ainda na UPA; recusou ainda toda e qualquer outra dominação estrangeira.”
Nalgumas cidades das províncias de Benguela, Namibe, Bié, Hufla, Malanje Kwanza-Sul e Huambo, os militantes da UNITA começam a precaver-se: andam armados pelas ruas, organizam-se na recolha de armas que nunca foram entregues, mobilizam-se em encontros. Luanda também assiste às movimentações dos homens da UNITA e, em breve, rebenta de novo o conflito, com proporções nunca vistas. A própria Margaret Anstee é alvo de um atentado no Lobito. Escapa ilesa.
De 30 de outubro a 2 de novembro de 1992, a capital angolana é palco de violentos confrontos entre apoiantes da UNITA, os ninjas e milícias armadas, como quando um dos grupos da UNITA, que se passeia fortemente armado por Luanda, mata cinco jovens, três portugueses e dois angolanos, em plena rua. No dia a seguir, é atacada uma esquadra de polícia perto do hotel Turismo, onde se hospeda grande parte dos dirigentes da UNITA. Os confrontos generalizam-se por toda a capital: em três dias, são contabilizados mais de 2000 mortos, números que nunca foram oficiais. (…)
O ruído dos disparos de armas automáticas crepitava nas ruas, pontuado pelo som mais forte de um morteiro ou de uma bomba a explodir, pelo rosnar de um jacto governamental ao passar por cima dos telhados, ou pelo ruído surdo e mais prolongado de um helicóptero de observação. A cidade estremecia e reverberava ao som dos ataques violentos. Todas as pessoas que o conseguiam fazer estavam metidas em casa. Por vezes ouviam-se as explosões bastante próximo: a polícia na porta ao lado disparava pela rua estreita que passava em frente da Embaixada. Mas disparava contra quem? Será que as forças da UNITA subiam o monte em direcção ao Ministério da Defesa? Será que a UNITA sabia que eu me encontrava na Embaixada? Será que os aviões do Governo estavam a bombardear Miramar?
Em Miramar, Salupeto Pena vangloriava-se de ter em seu poder um número não especificado de «brancos», incluindo seis embaixadores, a quem ameaçava matar. Não se fazia qualquer menção ao único e infeliz negro, o embaixador do Zimbabwe. Ele tinha ido para o Hotel Presidente com outros diplomatas de Miramar, mas como era diabético tivera de voltar para ir buscar insulina e fora capturado pela UNITA.
Na violenta troca de tiros, morrem dirigentes da UNITA com elevadas responsabilidades, entre eles, Jeremias Chitunda e um sobrinho de Savimbi, Salupeto Pena. Abel Chivukuvuku é gravemente ferido e Fátima Roque, uma portuguesa indigitada para ministra da Economia de um governo da UNITA, refugia-se na embaixada de Portugal. É a primeira vez, na história da guerra civil angolana, que políticos morrem em combate. Anos depois, Abel Chivukuvuku encontra uma explicação para o que aconteceu nesses dias:
“Eu penso que o plano era só limpar a cidade e em determinado momento o Governo perdeu o controlo. Porque o Governo tinha a percepção de que a UNITA tinha forças em Luanda, que a UNITA não tinha. Então armaram a população civil. Mas a UNITA não tinha sequer um carro blindado! Só pelotões. Cerca de três pelotões para o presidente Savimbi, provavelmente um pelotão para guarnição do Turismo, um pelotão no Morro Bento e depois pequenos elementos para guarnição dos dirigentes e mais nada, não tinha mais nada! Não tinha logística, não tinha nada, nada, nada! Não tinha sequer programa ou plano militar para Luanda! Mas o Governo foi encorajado pela comunidade internacional para pôr ordem.”(….)
Em toda a conversa, via telefone por satélite com o responsável norte-americano, (Jeff Davidow) Savimbi dá a entender que se encontrava em Luanda e que está a ser fustigado por balas. Mas nessa altura, encontra-se no Huambo, uma cidade (ainda) não colhida pela violência, idêntica à capital. No entanto, a velocidade dos acontecimentos é vertiginosa. Depois de várias tentativas, durante toda a manhã, o embaixador britânico consegue conversar com Jonas Savimbi. O diálogo dura praticamente uma hora e, paulatinamente, transforma-se num monólogo, cujas partes essenciais são registadas por Margaret Anstee:
“Não aceito o resultado das eleições. Não sou o único. Se eu estivesse sozinho nesta posição ninguém teria perturbado a ordem e a paz. Como não estou sozinho, tal como podem ver, o país desmoronou-se A última vez que nos encontrámos e em que conversámos o senhor já sabia quem iria ganhar as eleições, mas foram uma fraude. (...) Nós somos ovimbundu. Vivemos 300 anos debaixo das humilhações do Norte, de Van Dunem e de outros. Já chega, Os ovimbundu apoiam-me a cem por centro e eu estou preparado para morrer por eles. Quando os vossos líderes assinaram o Acordo de Munique o filho mais ilustre da vossa nação — Churchill - chorou de vergonha e mágoa. Sou o maior admirador dele. Vocês [na Grã Bretanha] fizeram um erro naquela altura. Ele serve-me de exemplo. Dos Santos nem sequer é angolano, ele é de São Tomé. Não podemos viver debaixo do jugo dos mulatos e dos kimbundu. (...) Estou a pensar na minha demissão, mas lembre-se que se fizer a guerra será pior que em Moçambique. Estou à espera de terça-feira [as eleições nos EUA]. Se Bush ganhar continuarei moderado e ficarei. Se Clinton ganhar demitir-me-ei. Sou cristão e quando alguém mente eu sei e essa pessoa perde a minha consideração. Este problema não é seu [mencionou mais uma vez Munique e Churchill] e continua a ser um homem que respeito.
Sei mais acerca da história da Grã-Bretanha do que sei acerca da história africana. (...) Estou no Huambo para ter a minha vida a salvo. O Governo quer matar-me. Dos Santos não está à minha altura, mas tenho de me retirar para a minha terra. Estou preparado para discutir a paz. (...) Quais são os seus termos? Por favor, diga-me quais são os seus termos para o cessar-fogo. O Secretário-Geral é meu amigo. Boutros-Ghali é um bom Secretário-Geral. Só há uma dificuldade. Quando eu disse a Nasser para roubar o território judaico não considerei os problemas que isso causaria ao povo judaico. Nós somos como eles. Há 70 horas que há combates, que foram iniciados pelo MPLA, apesar de todas as pessoas acusarem a UNITA. Não quer que eu me demita. Estou a pedir a opinião à minha esposa. Se Bush perder demitir-me-ei e já não terei nada a ver com a UNITA. Penso que devia demitir-me e pedir ao meu povo para respeitar o cessar-fogo, mas sem a minha presença eles não a aceitarão. […]
A última vez que nos encontrámos eu disse que havia algo esquisito com as eleições. Apesar de tudo gosto muito de vocês [britânicos]. Se o seu Governo quiser falar comigo estou preparado para o fazer, mas nunca mais regresso a Luanda. Vamos falar acerca do cessar-fogo. O senhor poderá desempenhar um bom papel. Os outros líderes estúpidos, Chiluba e os outros, não os quero ver envolvidos. […]
Disse a Salupeto Pena para deixar os estrangeiros de fora. (...) Embaixador, se deixarem que o MPLA mate o meu sobrinho Salupeto Pena e Ben-Ben, Chitunda e os outros, serei forçado a considerar toda a posição. Eu nunca mais teria futuro depois disso. Não tentem expulsar os meus companheiros de Luanda. Os americanos cometeram um erro grave e os sul-africanos — eles não me conhecem. Nas 70 horas de luta abatemos 300 polícias antimotim e também prendemos centenas. Temos generais deles sob prisão. Se perder os meus companheiros, Salupeto Pena e Ben-Ben, então perco o controlo sobre o meu povo. Os meus companheiros não podem ser expulsos de Luanda. (...) Quero um cessar-fogo com dignidade.
Os meus companheiros devem permanecer em Luanda. Como é que seria se eu bombardeasse Miramar da mesma maneira que a minha casa está a ser bombardeada? Quero encontrar uma solução. [Iniciou então uma diatribe contra o cardeal, a quem chamou «filho-da-mãe» e a quem acusou de afirmar que, apesar de Savimbi poder vir a ser um grande líder, como era proveniente do Sul tal desiderato não seria possível.] Quero que venha ao Huambo quando desejar. Será uma ponte entre o Governo e o meu povo ovimbundu. Vi um documento que afirma que, se Chivukuvuku, sob as ordens de Salupeto Pena, apelar para um cessar-fogo eu alinharei. Controlarei o meu povo, mas se matarem Chivukuvuku, Chitunda e Salupeto, ninguém controlará esta área. Permanecerei aqui. Se vier na segunda-feira recebê-lo-ei de braços abertos, mas não pode permitir que eles matem o meu sobrinho. [Aconteceu então uma diatribe incoerente acerca da forma como ele reagiria se o Governo tentasse matá-lo em Luanda. No Lubango ele comportar-se-ia «como um lobo... no Lobito juro que os matarei a todos, seja qual for o preço a pagar».] Quanto mais cedo vier melhor. Tire o meu sobrinho e Chitunda da cadeia. Se não o fizer acontecerá o pior. Neste momento estou a fazer tudo o que é possível para conter o meu povo. (...) Sim, aceito que negoceie como embaixador. (Eu gostava muito de N'Dalu209, mas agora não quero mais nada com ele. Ele é um bandido. Não tenho mais ligações com ele. Ele é de Cabo Verde, eu sou bantu.”
A cadência acelerada do discurso, muitas vezes sem nexo e atropelando ideias e pensamentos, passa a ser uma imagem de marca de Savimbi que se vai repetir nos anos seguintes. Da mesma forma que, em entrevistas ou palestras a militantes, vai recorrer, inúmeras vezes, às vidas e aos feitos de grandes figuras da História Mundial, apontando-as como exemplos. De forma delirante, as vidas de Winston Churchil, Charles de Gaulle, Alexandre Magno, Mão Zedong, Gamei Nasser e até Joseph Staline entram nas suas conversas, mesmo quando se encontra debaixo de fogo, acossado e prestes a ser apanhado.
Esses sinais, de uma certa esquizofrenia, são detetados por Margaret Anstee, quando se reúne com ele, a 10 de novembro de 1992, passado o «terramoto» do final do mês de outubro:
“Apesar de. tudo o que nos rodeava reflectir a obsessão do Dr. Savimbi com a segurança, ele próprio parecia relativamente descontraído. Pediu mais uma vez desculpa de forma simpática pelos anteriores ataques da UNITA à minha pessoa, tal como o fez Jorge Valentim, mas o discurso dele era muito desconexo e muitas vezes inconsistente; era evidente que ainda não era capaz, ou talvez não quisesse, discutir as questões de uma forma ordenada.
Tal como no caso das longas conversas telefónicas durante e após o recente conflito em Luanda, ficámos com a impressão de que o Dr. Savimbi apresentava «uma corrente de consciência» e obtinha alívio psicológico através da exposição do seu pesar e das suas razões de queixa. Os assuntos que abordou foram os mais variados, mergulhando por vezes na história antiga — dos impérios romano, persa e Bantu — e por vezes falava mesmo de Chur-chill e de De Gaulle. Torturava-se e especulava muito acerca do que acontecera em Luanda e da morte dos seus mais íntimos colaboradores («Nunca se mata um enviado; manda-se essa pessoa de volta e depois o enviado pode ser mudado ou a mensagem pode ser alterada»”
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Apesar das promessas feitas ao embaixador britânico, o líder da UNITA não aceita um cessar-fogo e não se demite da liderança do partido, logo a seguir à vitória do democrata Bill Clinton nas presidenciais dos EUA, em novembro desse ano.
A violência, nesses três dias, atinge as cidades de Benguela, Lobito, Lubango, Malanje, Huambo, Luena, Sumbe, Namibe. As autoridades governamentais recebem a ajuda de cooperantes estrangeiros que habitam nessas cidades para tentar travar a UNITA. Quase toda a gente combate. Nalgumas cidades, como Benguela, Sumbe, Lobito e Lubango, os homens de Savimbi são expulsos. Mas, em pouco tempo, a UNITA começa a controlar quase 70 por cento do território nacional. A esmagadora maioria são apenas vilas e aldeias, mas servem os intentos de Jonas Savimbi: perde nas eleições, mas volta a mandar numa parcela do território. Volta a ser o Presidente Savimbi. O Doutor General.
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Francismundo2013